segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Entrevista ao jornal O Público de Nuno Ferrand

É biólogo, director do Cibio, Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos da Universidade do Porto, professor do Departamento de Biologia da Faculdade de Ciências da mesma universidade, onde lecciona Genética e Evolução. Move-se no circuito da ciência internacional. Tem 47 anos e olha para o país com um inesperado optimismo, que esta entrevista acaba por explicar. Há 25 anos não tínhamos nada. Hoje temos nichos de excelência que podem ombrear com o melhor do melhor. Um país que tem isto tem futuro.

Esta entrevista ocorreu, por acaso, no dia em que terminava em Nagoya, Japão, a cimeira da ONU sobre a Biodiversidade.

Como é que se mobilizam as pessoas para a importância da biodiversidade, quando o mundo, e sobretudo as sociedades ocidentais que normalmente financiam estas iniciativas, atravessa uma tremenda crise económica da qual não se sabe ainda bem como vai sair?

É difícil, mas penso que podemos transformar esta crise numa oportunidade. A crise resulta também do modelo de crescimento que temos tido ao longo destes últimos 50 anos, praticamente desde o pós-guerra. E, se quiser, tem raízes históricas que começam há 10 mil anos, quando o homem começa a domesticar os animais, que é o início daquilo a que chamamos hoje "civilização".

Este distanciamento do homem em relação à natureza acentua-se com a Revolução Industrial. A maior parte das pessoas começa a dirigir-se para as cidades, onde hoje vive mais de 50 por cento da população mundial. Há uma espécie de dissociação entre a nossa espécie e a nossa vivência e o mundo natural, que é o mundo que nos suporta. Basicamente, aquilo a que chamamos "recursos naturais e recursos biológicos" fazem parte de uma pequeníssima camada a que chamamos "biosfera" e que tem recursos finitos.

Explicar isso não é nada fácil...

Não é nada fácil, mas este é o momento ideal precisamente por ser um momento de crise. É preciso que as pessoas percebam - e percebem agora melhor - que alguma coisa vamos ter de mudar, porque a perda de recursos a que se está a assistir hoje, a perda dos serviços dos ecossistemas, não é compatível com a preservação do enorme nível de bem-estar que alcançámos.

Mas é difícil explicar às pessoas que o papel de uma borboleta, de um pássaro ou de um lince são fundamentais para o seu bem-estar e para a sua sobrevivência.

Isso é importante, porque cada espécie vale por si. Mas não devemos ir por aí. Devemos explicar que há uma diferença qualitativa na crise da biodiversidade em relação a tudo o resto - às alterações climáticas, à poluição, à destruição do ambiente. A perda da biodiversidade é irreversível. Não há retorno possível.

O que está a dizer é que este modelo de desenvolvimento actual é insustentável?

É. Muita investigação recente mostra uma progressiva dissociação entre aquilo que ganhamos, o nosso rendimento, e os nossos níveis de bem-estar e de fruição da vida. Atingiu-se uma espécie de patamar que põe em causa aquilo que estamos a fazer. Não temos de crescer por crescer. Há outras maneiras de avaliar o progresso.

Mas essa é hoje a lógica das nossas sociedades...

Que é incompatível com os recursos que temos, porque são finitos.

O que está a propor é uma verdadeira revolução dos nossos padrões e do nosso modo de vida. Hoje, melhorar a vida das pessoas é melhorar o seu acesso ao consumo e a bens fundamentais, como saúde e educação.

Absolutamente. A ideia de consumo vai ter de ir mudando. Há muitas outras formas de fruir a vida que podem estar muito mais ligadas à nossa satisfação intelectual e que não estão ligadas ao consumo material. Vai demorar gerações a mudar, mas acho que esta crise que estamos a viver é o primeiro grande sinal...

Que implica uma mudança de valores?

Implica uma mudanças de valores. Temos de começar a pensar a economia global em termos mais ligados à sustentabilidade. Temos de evoluir para uma economia mais baseada na avaliação dos recursos que temos à nossa disposição e, depois, para uma maior justiça da distribuição, que também é fundamental. É chocante a continuação, ou mesmo o aumento da desigualdade numa altura em que a nossa capacidade para criar bem-estar nunca foi tão grande. E seria com muito poucos recursos que nós faríamos a grande diferença nos países a que chamamos "em desenvolvimento". Com muito poucos recursos, poderíamos rapidamente aumentar o bem-estar dessas pessoas em termos de alimentação, de saúde, de esperança de vida...

Aí, saímos da ciência para o patamar da política. É preciso organizar o mundo de outra maneira.

É isso que tem falhado.

A cimeira da biodiversidade no Japão [na semana passada] pôs em evidência um padrão comum de comportamento que se pode resumir assim: os países em desenvolvimento, mesmo os que são mais avançados, como a China ou o Brasil, apontam o dedo às sociedades desenvolvidas, responsabilizando-as pelo modelo que levou à delapidação dos recursos. Mas não abdicam de copiar esse modelo. Como se sai daqui?

A única via é a educação. É evidente que a ambição de países em vias de desenvolvimento que estão em grande crescimento é copiar os países ricos. Quando se pensa na China ou na Índia ou no Brasil, é isso que se vê.

Mas a natureza não aguentará?

Não aguentará. Já estamos a consumir muito mais do que aquilo que o planeta nos pode dar. Todos os estudos nos mostram isso, que está hoje traduzido na metáfora da pegada ecológica. Se continuarmos assim, vamos precisar de muito mais em muito pouco tempo e isso pode levar-nos a uma situação insustentável.

Que pode ameaçar o próprio homem?

Que vai, pelo menos, desencadear conflitos tremendos pelos recursos.

Este para mim é o momento ideal, por causa da crise, para começarmos a discutir estas coisas. E sou optimista, na medida em que penso que se tem vindo a fazer cada vez mais para resolver estes problemas a nível global. Nunca tivemos na ciência níveis tão avançados, em particular na biologia, e a biologia vai ser a ciência do século XXI. Já é um lugar-comum dizer isto. Atingiu níveis de maturidade e de aplicação que atingem todas as esferas da vida, da saúde ao ambiente, até à compreensão do mundo que nos rodeia e à compreensão da nossa própria natureza. O que é que somos, porque é que somos assim. É uma diferença qualitativa em relação à química e à física, que marcaram o século XIX e o século XX. Estamos a falar dos gnomas, da possibilidade de mudar geneticamente as plantas e os animais e isso é uma revolução que nos poderá permitir, por exemplo, responder a muitas das necessidades dos países em desenvolvimento, tornando a sua agricultura mais sustentável e as espécies mais resistentes.

A diferença hoje é que a biologia nos permite uma reflexão sobre o mundo e sobre nós próprios que, se calhar, não tínhamos tido antes. E sobre a partilha da vida com muitos outros milhões de espécies, algumas que estão ainda por conhecer e que vão ser fundamentais para o nosso bem-estar no futuro. Este vai ser um século marcado pela biologia e marcado por uma nova perspectiva que ela nos permite ter em relação ao planeta e a nós próprios. Sem dúvida.

Mas falta a tal resposta política, o governo global que possa harmonizar tudo isso, para conseguir concertar interesses.

Falta. Mas penso que isso chegará cada vez mais aos grandes líderes mundiais por imposição das sociedades. Há um registo pessimista em relação à crise mundial - e, já agora, em relação à crise portuguesa - que não partilho. Se pensar que há 20 anos praticamente não havia investigação em Portugal e hoje estamos no nível em que estamos em menos de uma geração...

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